quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Teolinda Gersão, José Luís Peixoto e Afonso Cruz escrevem sobre crianças especiais

Surdo-cegueira, síndrome de Cornélia de Lange e hiperactividade são as incapacidades. Não as crianças.
Ilustração de Carolina Arbués Moreira
Ilustração de Vasco Gargalo

Ilustração de Marta Leite












A colecção Meninos Especiais, da Associação Pais em Rede, tem três novos títulos: O Mundo de Carolina (texto de Teolinda Gersão e ilustração de Carolina Arbués Moreira), Martim, o Menino assim (José Luís Peixoto e Vasco Gargalo) e À Velocidade do Pensamento (Afonso Cruz e Marta Leite).
“Olá, sou a Carolina! Tenho treze anos. Esta é a minha irmã Joana. E esta é a minha mãe. Toco no ombro delas e no teu, para te dizer isso.” Assim começaO Mundo de Carolina. Mais adiante, há-de ficar registado: “Eu não vejo nem ouço. Mas percebo tudo” (pág. 3).
Para a escritora, esta experiência “foi uma lição de vida”, diz ao PÚBLICO. “Encontrei-me com a Carolina e a família, para perceber como interagiam, e fiquei comovida, impressionada.”
Teolinda escreve, pela voz da menina: “A minha mãe percebe tudo o que eu digo, porque eu tenho língua e falo, só que não são palavras. Mas ela entende tudo, mesmo sem palavras. E aprendeu todos os gestos para tocar em mim e falar comigo, os mesmos gestos que eu aprendi na escola. Sabes que ela me adoptou, quando eu era pequena? Sou filha do seu coração.”
Teolinda diz, pela própria voz: “Eu quis criar uma história positiva no livro. A ligação à família, a importância da relação com o cão, o Tico. É tudo verdade: a avó, o pai, que vive noutra casa, a irmã, os abraços, a alegria e a sensibilidade. Só o episódio do incêndio é que é ficção.”
A escritora imaginou a criança a salvar a família de um incêndio. “(…) acordei porque senti um cheiro horrível a gás. Comecei a tossir e levantei-me e o Tico saltou logo e foi comigo acordar a minha mãe. Corremos todos, a tossir, para a casa dos vizinhos e telefonámos aos bombeiros. Havia uma fuga de gás em nossa casa, na cozinha, e teríamos morrido se eu não tivesse acordado” (pág. 18).
Heroína no lado de lá e de cá das páginas – foi isso que Teolinda Gersão quis transmitir neste novo livro editado pela Associação Pais em Rede.
Dos três títulos iniciais da colecção foram vendidos 7500 exemplares: Um Detetive em Cadeira de Rodas (texto de Luísa Ducla Soares e ilustração de Ana Ferreira), Um Mundo só Meu (Alice Vieira e Paulo Guerreiro), É Bom Ter Amigos (Luísa Beltrão e Tânia Bailão Lopes).
Mundo sensorial e feliz
Teolinda Gersão diz ter tomado consciência de que “as diferenças são menores do que as igualdades” entre estas crianças especiais e nós. “Continuamos a ser muito egoístas e consumistas. Mas os grandes valores são as pessoas e os afectos. Andamos esquecidos do que é essencial”, diz a escritora, e realça “a alegria, generosidade e capacidade de entrega da mãe de Carolina e de Joana”. Ambas adoptadas. “Helena Tomás é uma pessoa admirável.”
Ficou também com grande admiração por aquelas crianças, “que têm uma enorme vontade de viver e habitam num mundo muito sensorial e feliz”. Carolina não consegue articular palavras, mas já aprendeu a ler em braille e a usar a língua gestual portuguesa. É assim que comunica com o mundo.
A autora lembra que “integrar, ajudar, valorizar estas famílias faz parte do exercício pleno de cidadania da parte de quem, aparentemente, não tem incapacidades”.
Ilustrar para quem não vê
Para Carolina Arbués Moreira, foi grande o desafio de ilustrar as palavras de Teolinda e o universo de surdo-cegueira da jovem (e sua homónima) Carolina. O tempo era pouco e a responsabilidade muita. “Encontrei-me com ela, junto da sua família na Casa do Artista, e conversei bastante com a mãe, Helena (enquanto a irmã, Joana, tinha uma aula de dança). Contou-me as imensas coisas que a Carolina consegue fazer sozinha: torradas, pôr a mesa, vestir-se, tomar banho”, descreve ao PÚBLICO com entusiasmo. Elogia ainda o bom humor da menina e “a vontade de comunicar, de conhecer, de rir!”.
A ilustradora escolheu desenhar a carvão e posteriormente digitalizar e editar as imagens. Tentou ir ao encontro das necessidades da jovem. “Optei por não representar as figuras realisticamente, sugerindo uma sensação mais palpável (e talvez ambígua) sobre estas. Isto desloca-nos, distorce a noção de espaço e obriga-nos a desvendar, por entre sobreposições e texturas, o que é cada objecto e para que serve. Tal como a Carolina tem de fazer”, explica.
Com o apoio do Instituto Helen Keller, conseguiu que se fizesse uma edição especial, com o texto em braille e os desenhos impressos em relevo. “A estrela do livro não iria conseguir lê-lo sem esta solução.” Uma ideia que surpreendeu todos no dia do lançamento, 5 de Dezembro, no Museu da Electricidade, em Lisboa.
Mas a menina não ficou lá muito satisfeita por aparecer de olhos fechados “Eu não sou cega”, disse à mãe, Helena Tomás, que nos revela: “Ela continua a achar que não é cega. E também diz que não é surda. Quando sente vibrações, diz que está a ouvir.”
Com todas as suas limitações, “a Carolina sempre tenta dar a volta aos problemas”, prossegue a mãe da menina. Adoptou-a quando esta tinha cerca de dois anos e meio. Agora, tem 14.
Só um Natal a ver e ouvir
“Já se sabia que iria ter de fazer um transplante renal e sujeitar-se a diálise peritoneal. Tudo isso estava programado, não era impeditivo [da adopção]”, começa a contar. E continua, numa voz calma: “Quando ela ficou bastante doente, precisamente durante a colocação do catéter para fazer a diálise peritoneal, estava há cerca de quatro, cinco meses connosco. As coisas não correram muito bem e ela ficou no SO. Foi aí, suponho, que apanhou o tal vírus [que desencadeou a surdo-cegueira].” Tinha perto de três anos e estava ainda a decorrer o processo de adopção.
“Nesse ano, passados três/quatro meses, ela deixou de ver e de ouvir, foi gradual, mas rápido. Acabou por passar só o primeiro Natal connosco a ver e a ouvir”, recorda Helena, 52 anos e assistente comercial. A partir daí foi uma aprendizagem contínua, “inicialmente muito complicada, porque ela continuava a falar, mas não nos ouvia nem via, nós ainda não sabíamos como chegar até ela”.
Quando Carolina entrou para a escola que ainda hoje frequenta, a António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa, a comunicação voltou a ser possível. Tinha quatro anos. “É uma escola pública e pertence à Casa Pia, é uma ferramenta fundamental para a minha filha.”
Crianças, jovens e adultos frequentam a António Aurélio. “Para além de outras problemáticas e deficiências, está vocacionada para a surdo-cegueira. Não tem o ensino regular, são aprendizagens adaptadas. Nesta fase, já iniciou o braille e tem outras actividades: natação, snuzlan, ateliers de pintura, de culinária. Tem um leque de actividades adaptadas para este tipo de crianças”, descreve, para concluir: “A Carolina gosta muito de lá estar.”
Sentido de justiça
Helena tem outra filha, a Joana. É mais nova, tem 11 anos e foi adoptada quando a Carolina tinha cinco. “É muito comunicativa, muito curiosa. Está numa escola regular, mas tem dificuldades de aprendizagem, défice de atenção e um pouco de hiperactividade. Às vezes, não é fácil lidar com ela”, diz.
A relação entre as irmãs é igual a tantas outras: “Tão depressa estão aos beijinhos como às turras. São sobretudo as invasões de espaço que motivam os conflitos. Mas são inseparáveis.” A Joana já “fala por gestos” com a irmã, mas, como é muito “acelerada”, a mãe tem por vezes de fazer “tradução simultânea”.
Helena Tomás enaltece o sentido de justiça de Carolina e a sua percepção do espaço e, sobretudo, do tempo. “Tem uma noção exacta dos dias, das semanas, dos fins-de-semana, até quase ao pormenor das horas.” E conta um episódio recente: “Estava numa aula de braille e disse à professora que o tempo tinha acabado. Ela tinha um bloco de 45 minutos. A professora olhou para o relógio e disse: ‘Ok. Realmente acabou o tempo’.”
Carolina já recebeu uma medalha de remo e, “há dois anos, ganhou um prémio de mérito pela independência e competências”. Com o dinheiro, quis comprar um relógio em braille. “Ela é super-inteligente e explora todas as suas capacidades”, diz a mãe, com orgulho contido.
É sempre possível comunicar
Desde há dois anos que, de 15 em 15 dias, “as meninas passam o fim-de-semana com o pai e alguns dias de férias, a avó também dá um apoio”. Helena Tomás diz que voltaria a fazer tudo. Não se arrepende das decisões que tomou. “Nunca tive qualquer depressão à conta de todas as questões que foram acontecendo. Uma coisa é ficar triste e angustiada por não conseguir resolver no imediato determinadas coisas, mas isso acontece com qualquer criança. É complicado, um pouco trabalhoso e uma responsabilidade muito grande. Mas acho que nunca me vou arrepender.”
Carolina “está toda feliz porque tem um livro com o nome dela”. Helena diz também gostar do livro: “É importante e bastante interessante para o público a que se dirige. Para as crianças conhecerem outras deficiências, que não assim tão comuns, como a surdo-cegueira. E para perceberem como é sempre possível comunicar, porque se trata mais de uma questão de comunicação, mesmo sem sentidos dos quais quase todos usufruímos.”
Talvez preferisse que O Mundo de Carolina tivesse mais histórias da filha: “Mas teria de ser um livro bem maior. No todo, ficou bem.”
A importância da música
Martim, o Menino assim tem a assinatura de José Luís Peixoto, que quis, com este texto, “homenagear” o rapaz. O autor disse ao PÚBLICO que pretendeu “celebrar o Martim e tudo o que ele traz à vida das pessoas que lhe são próximas”. Assim, deu-lhe “o palco” e transformou-o “numa estrela”.
Depois de alguma timidez inicial no contacto entre os dois – “senti-me numa espécie de blind dating, não sabia o que me esperava, ia conhecer uma família inteira” –, a cordialidade passou à cumplicidade. “Eu também dancei e pintei com ele”, conta. “No quarto do Martim há uma parede para se desenhar com giz, e ele mistura dança e desenho. A música é muito importante” para o menino.
No livro (e fora dele), Martim é assim: “Agora, enquanto estamos aqui a falar, o Martim está a dançar. Aponta para um lado, aponta para o outro, dá passos para a frente e para trás. Roda a cintura, abana a cabeça, sabe bem o que faz” (pág. 2).
José Luís Peixoto ficou impressionado com a resposta dos pais do rapaz perante as especificidades que a síndrome de Cornélia de Lange exige. “É impressionante o trabalho deles, os enormes desafios a que dão resposta no dia-a-dia. Eu também tenho filhos, mas sem necessidades especiais, e esta experiência fez-me reequacionar as queixas” à volta do exercício da paternidade.
O autor gostou muito que as ilustrações (de Vasco Gargalo) espelhassem o rosto e alegria de Martim.
Torrente de pensamentos
Para Afonso Cruz, que escreveu À Velocidade do Pensamento, o contacto com Cláudia também foi uma “excelente e gratificante experiência”. O autor diz ter sido bem aceite pela menina e ter tentado centrar-se nos gostos dela. “Daí o básquete”, conta. “Depois, quis mostrar esta coisa torrencial de passar de um pensamento para outro”, próprio da hiperactividade e que muito bem descreve na história, que decorre num jogo daquela modalidade desportiva. “(…) Para que lado é que tenho de correr? Um apito, o árbitro apitou, o que é aquilo na bancada?, parece um animal, não, é um barrete que parece um cão, só lhe falta ladrar. Os cães têm um grande olfacto e isso fascina-me, apesar de eu, passam-me a bola, sentir que, perco a bola, é aborrecido levá-los à rua, mesmo sabendo que são animais espectaculares” (págs. 11-12).
Ilustração de Marta Leite
O autor diz ao PÚBLICO: “Pode até parecer invejável a cabeça conseguir vaguear por tantas coisas em pouco tempo, mas é um problema.” E exemplifica: “Querer voltar a casa e ir parar não se sabe onde.” Mas, tal como Teolinda Gersão, o escritor quis mostrar no livro o lado positivo de tudo isto: “Ouço chamarem-me outra vez, recebo a bola e encesto. Três pontos”, (pág. 20).

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