sábado, 28 de março de 2015

Com a revolução digital, “os dedos passaram a ser os olhos” de quem não vê - Público-


Quando começou a estudar, Ana Sofia Antunes usava uma máquina de braille, “com um professor de apoio, no ensino básico, que raramente aparecia”. Na faculdade, começou por andar com um gravador às costas, gravava as aulas, como tinham de fazer todas as pessoas com deficiência visual como ela, e ouvia em casa, onde escrevia em braille os apontamentos. “Nessa altura, tinha um telemóvel, um tijolo, que tinha teclas mas que não tinha nenhum sistema de voz — que permitisse ler SMS ou responder. Só podia receber e fazer chamadas. E todos os números para os quais queria ligar tinham de estar decorados na minha cabeça.” No 2.º ano da universidade, os pais gastaram uma fortuna para que tivesse um computador portátil. Adquirir tecnologia adaptada era caríssimo. Não foi assim há tanto tempo. E, no entanto, de lá para cá aconteceu uma “verdadeira revolução”.
O balanço é feito por Ana Sofia Antunes, 33 anos, formada em Direito, presidente da direcção nacional da Acapo — Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, a propósito dos 25 anos da associação. Actualmente, existem múltiplas aplicações que contribuem para a autonomia “e consequente integração das pessoas com deficiência visual” na sociedade. “Hoje tenho um iPhone com o qual escrevo mensagens. Posso pegar nele e consultar a meteorologia, posso, com ele, fazer o reconhecimento de um objecto — quando vou à dispensa, lá em casa, se não consigo distinguir dois produtos porque as caixas são iguais, fotografo-as e peço ao iPhone para fazer o reconhecimento do objecto e ele vai dizer-me se a caixa é de salsichas ou cogumelos...”
Há aplicações para smartphones que informam em alta voz, mal se aponta para uma nota, se ela é de 5 euros, 20 ou 50; que “dizem” qual a cor da camisola que está pendurada no guarda-fatos; que “lêem” rótulos de embalagens e outras que lêem livros e jornais; que mostram a localização de um hospital, através de programas de GPS adaptados a cegos e a pessoas com baixa visão. Ana Sofia já não tem que decorar números de telefone, porque eles estão gravados, numa lista que lhe é acessível. “São muitos os ganhos”, diz, explicando que hoje, o trabalho da Acapo também passa muito por promover workshops aos seus associados sobre a utilização das novas tecnologias. “Mas mesmo no âmbito da tecnologia, ainda há muitas barreiras que persistem”, lamenta.
De tudo isto se falou nesta sexta-feira, em Lisboa, num encontro promovido pela Acapo com jornalistas, a propósito dos 25 anos da associação — a escritura de constituição da Acapo tem a data de 20 de Outubro de 1989, mas foi a 3 de Março de 1990 que tomaram posse os primeiros órgãos nacionais. As celebrações do aniversário prosseguem até ao próximo mês de Outubro.
“Estão a acontecer coisas revolucionárias”, segundo Jorge Fernandes, do departamento para a sociedade da informação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, também presente no encontro desta sexta-feira. Uma das mais recentes é esta: os tablets passaram a trazer de raiz teclados braille. Fernandes exemplificou como se faz: ao tocar no ecrã, o software identifica e posiciona automaticamente as teclas por debaixo dos dedos (são seis as que compõem o caracter em braille). Um sistema de voz vai informado que caracteres estão a ser criados com a combinação escolhida por Jorge Fernandes: “J” — ouve-se. “O”, “R”, “G” “E”. Resume o especialista: “Os dedos passaram a ser os meus olhos.”
“Ainda há muito trabalho a concretizar da parte de quem programa e disponibiliza informação e serviços online”, diz a presidente da direcção nacional. Desde logo, num tempo em que tudo está em constante mudança, é preciso que a preocupação com a acessibilidade acompanhe o ritmo. “Temos muitas vezes muitos dissabores porque, por vezes, um site de informação que até já foi acessível introduz uma mudança de design qualquer ou uma nova funcionalidade e, por um passo simples, a acessibilidade que até existia para pessoas com deficiência visual perde-se.”
Outro exemplo referido: as máquinas de bilhetes no Metro de Lisboa deixaram de ser acessíveis para cegos depois das últimas alterações introduzidas. Restam as bilheteiras físicas que nem sempre estão abertas. “É uma pena, porque não era assim”, diz Graça Gerardo, vice-presidente da direcção nacional.
O acesso aos livros é outra preocupação da Acapo. Alguns sites de algumas editoras estão preparados para que cegos possam comprar livros, mas não para que os possam ler — o que obriga à solução arcaica de “scannear” os livros para que possam ser sujeitos a um programa de reconhecimento de texto. A Acapo alerta ainda para a necessidade de Portugal “ratificar o Tratado de Marraquexe”, que visa facilitar a transcrição de livros em formatos acessíveis (braille, áudio, etc.) e o seu intercâmbio entre diferentes países, “aumentando assim, exponencialmente, a bibliografia para pessoas com deficiência visual”.

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