Márcio Berenguer
No areal da praia Formosa na quinta-feira
ainda era dia de ensaio. Os
equipamentos não estavam ainda
totalmente operacionais, e os técnicos
da câmara municipal andavam
às voltas com os manuais, baterias
solares, cadeiras e bóias.
Numa cadeira de rodas, a poucos
metros dali, Hernâni Silva observa
curioso a azáfama. Para ele, tudo
aquilo que está a nascer na praia
Formosa, é uma “grande vitória”.
O projecto de praia adaptada, que
foi o mais votado do orçamento participativo
do Funchal, é da autoria
deste funcionário municipal de 45
anos. “Sempre fui um amante da
praia, e nenhuma das que frequento
são verdadeiramente adaptadas
às pessoas com difi culdades de locomoção”,
lamenta Hernâni Silva,
sublinhando que para uma praia ser
acessível “não basta” hastear uma
bandeira e apresentar-se como tal.
Hernâni Silva queria uma coisa
prática e discreta. “Não gosto de
estar dependente dos outros, e
sempre que queria ir nadar estava
à mercê da boa vontade de alguém”,
explica, lamentando a falta de “dignidade”
dos sistemas que existem
em algumas praias.
Em algumas existem gruas hidráulicas
que carregam as pessoas
até à água. “É preciso colocar fi tas
e mais fi tas, é tudo um espectáculo,
um palco que se cria na praia para
as pessoas com defi ciência, que não
é digno”, exemplifi ca, olhando para
este novo “pedaço” da praia Formosa
como um modelo de simplicidade
e autonomia.
José Figueira não vê, mas sente essa
facilidade. Invisual desde jovem,
devido a uma doença progressiva,
também foi à praia Formosa tentar
perceber essa mudança. Adora o
mar. O cheiro. A liberdade que a água
proporciona. Até agora, era sempre
uma sensação partilhada. “Tenho
de ir sempre acompanhado por alguém,
para me referenciar”, explica.
Agora, José Figueira já pode ir
nadar sozinho. “É um projecto louvável,
como são todas as iniciativas
que visam a inclusão”, diz, admitindo
que tem algumas reticências soUm
projecto pensado
em nome da dignidade
bre a forma como tudo irá funcionar
no dia-a-dia. “Com miúdos a jogar
à bola, música nos bares, pessoas a
conversar, será difícil no início lidar
com o sistema de avisos sonoros.”
Mas para ele não existem barreiras
nem impossibilidades. Fisioterapeuta
de profi ssão e dançarino por
paixão, José Figueira já fez muitas
coisas que a maioria julga vedadas a
invisuais. “Comigo, essa conversa do
coitadinho do ceguinho não existe”,
afi rma, dizendo que já fez ski aquático,
ski na neve, e viveu muitas outras
experiências. “Quero viver muitas
mais”, diz José Figueira, que desde
2011 integra o grupo de dança inclusiva
Dançando com a Diferença.
Por isso, ir ao mar sozinho será
apenas mais uma conquista pessoal.
“Esta iniciativa vem ajudar e muito,
porque ninguém gosta de depender
dos outros, muito menos em situa-
ções tão simples como sentir o mar
à nossa volta.”
Para Hernâni Silva, é uma dupla
conquista. Poder ter uma praia com
acesso facilitado, e sentir que a ideia
foi sua. “Tenho de agradecer às autoridades
por terem apoiado a ideia,
e à população por ter voltado nela”,
salienta, pensando que talvez mais
autarquias adquiram agora uma nova
consciência sobre a importância
de incluir todos os cidadãos na vida
das cidades.
Noutras praias, noutras cidades,
Hernâni Silva já alertou para esta
problemática, mas a resposta é
sempre matemática. “Dizem sempre
que não têm dinheiro, e que estão a
tentar melhorar dentro das possibilidades
do orçamento.” A verdade é
que as cidades são lugares difíceis,
e as praias podem ser caóticas para
quem está sentado numa cadeira de
rodas. “Temos de serpentear pelas
toalhas, rezar para as rodas não fi -
carem presas, e depois esperar que
um nadador-salvador nos auxilie, o
que nem sempre acontece.”
Uma odisseia marítima, que Hernâni
Silva espera que na próxima
semana, quando a praia estiver operacional,
termine. “Pelo menos que
seja mais fácil, para pessoas com di-
fi culdades de locomoção, sejam elas
permanentes ou não, aproveitarem
um dia de praia da forma mais natural
e independente possível.”
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