sábado, 15 de agosto de 2015

Um projecto pensado em nome da dignidade - Público



Márcio Berenguer

No areal da praia Formosa na quinta-feira ainda era dia de ensaio. Os equipamentos não estavam ainda totalmente operacionais, e os técnicos da câmara municipal andavam às voltas com os manuais, baterias solares, cadeiras e bóias. Numa cadeira de rodas, a poucos metros dali, Hernâni Silva observa curioso a azáfama. Para ele, tudo aquilo que está a nascer na praia Formosa, é uma “grande vitória”. O projecto de praia adaptada, que foi o mais votado do orçamento participativo do Funchal, é da autoria deste funcionário municipal de 45 anos. “Sempre fui um amante da praia, e nenhuma das que frequento são verdadeiramente adaptadas às pessoas com difi culdades de locomoção”, lamenta Hernâni Silva, sublinhando que para uma praia ser acessível “não basta” hastear uma bandeira e apresentar-se como tal. Hernâni Silva queria uma coisa prática e discreta. “Não gosto de estar dependente dos outros, e sempre que queria ir nadar estava à mercê da boa vontade de alguém”, explica, lamentando a falta de “dignidade” dos sistemas que existem em algumas praias. Em algumas existem gruas hidráulicas que carregam as pessoas até à água. “É preciso colocar fi tas e mais fi tas, é tudo um espectáculo, um palco que se cria na praia para as pessoas com defi ciência, que não é digno”, exemplifi ca, olhando para este novo “pedaço” da praia Formosa como um modelo de simplicidade e autonomia. José Figueira não vê, mas sente essa facilidade. Invisual desde jovem, devido a uma doença progressiva, também foi à praia Formosa tentar perceber essa mudança. Adora o mar. O cheiro. A liberdade que a água proporciona. Até agora, era sempre uma sensação partilhada. “Tenho de ir sempre acompanhado por alguém, para me referenciar”, explica. Agora, José Figueira já pode ir nadar sozinho. “É um projecto louvável, como são todas as iniciativas que visam a inclusão”, diz, admitindo que tem algumas reticências soUm projecto pensado em nome da dignidade bre a forma como tudo irá funcionar no dia-a-dia. “Com miúdos a jogar à bola, música nos bares, pessoas a conversar, será difícil no início lidar com o sistema de avisos sonoros.” Mas para ele não existem barreiras nem impossibilidades. Fisioterapeuta de profi ssão e dançarino por paixão, José Figueira já fez muitas coisas que a maioria julga vedadas a invisuais. “Comigo, essa conversa do coitadinho do ceguinho não existe”, afi rma, dizendo que já fez ski aquático, ski na neve, e viveu muitas outras experiências. “Quero viver muitas mais”, diz José Figueira, que desde 2011 integra o grupo de dança inclusiva Dançando com a Diferença. Por isso, ir ao mar sozinho será apenas mais uma conquista pessoal. “Esta iniciativa vem ajudar e muito, porque ninguém gosta de depender dos outros, muito menos em situa- ções tão simples como sentir o mar à nossa volta.” Para Hernâni Silva, é uma dupla conquista. Poder ter uma praia com acesso facilitado, e sentir que a ideia foi sua. “Tenho de agradecer às autoridades por terem apoiado a ideia, e à população por ter voltado nela”, salienta, pensando que talvez mais autarquias adquiram agora uma nova consciência sobre a importância de incluir todos os cidadãos na vida das cidades. Noutras praias, noutras cidades, Hernâni Silva já alertou para esta problemática, mas a resposta é sempre matemática. “Dizem sempre que não têm dinheiro, e que estão a tentar melhorar dentro das possibilidades do orçamento.” A verdade é que as cidades são lugares difíceis, e as praias podem ser caóticas para quem está sentado numa cadeira de rodas. “Temos de serpentear pelas toalhas, rezar para as rodas não fi - carem presas, e depois esperar que um nadador-salvador nos auxilie, o que nem sempre acontece.” Uma odisseia marítima, que Hernâni Silva espera que na próxima semana, quando a praia estiver operacional, termine. “Pelo menos que seja mais fácil, para pessoas com di- fi culdades de locomoção, sejam elas permanentes ou não, aproveitarem um dia de praia da forma mais natural e independente possível.” 

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