quinta-feira, 29 de maio de 2014

Este país não é para... todos! - JOSÉ ANTÓNIO FERREIRA LOPES 24/05/2013 - Público

Na forma como se pensam e se gerem as nossas cidades, deve ser preocupação presente e crescente o modo como são asseguradas a todos os cidadãos as mesmas oportunidades de acesso, participação ou usufruto do conjunto dos seus espaços, bens e serviços. Ora se para a interacção do indivíduo com o meio (leia-se do cidadão com a cidade) contribuem determinantemente as suas capacidades pessoais, únicas e diferenciadoras (físicas, sensoriais e cognitivas) e que estas são dinâmicas e variáveis, dependendo da idade, do sexo ou da condição de saúde, deve naturalmente responsabilizar-se o meio urbano, não descurando as suas características e atributos dos espaços, edifícios e serviços que o compõem.
Se genericamente se aceita que os diversos ambientes construídos se apresentem com condições mais adversas ou mais favoráveis ao seu usufruto, assume-se com relutância que as nossas cidades o fazem de forma muito desigual e discriminadora. No que respeita à forma como as cidades se organizam e desenvolvem, encontramos razões de fundo na constituição dos solos ou no relevo, mas para o cidadão, seja enquanto peão, ciclista, automobilista ou utilizador de transportes públicos, essa desigualdade é patente no modo como se encontram concebidos e construídos os espaços públicos (arruamentos, praças, parques e jardins) e o modo como a eles acedemos, como aos edifícios, aos sistemas de transporte, de orientação ou informação ou outros serviços urbanos.
O ideal e a ambição de melhorar o acesso de "todos a tudo" fazem com que os governos de muitas das nossas cidades tenham vindo a empreender acções de adaptação e de qualificação do desempenho urbano, oferecendo uma melhor qualidade de vida, conseguindo ainda uma maior sustentabilidade do sistema urbano, bem como a potenciação dos seus factores distintivos de atractividade e de competitividade. É debaixo dos princípios técnicos do que se designa por "Design Inclusivo", "Universal" ou "para Todos", e na abrangência destes propósitos e conceitos, que persegue a "Cidade Acessível", lugar privilegiado da aproximação ao exercício do direito à acessibilidade e, através dele, à plena cidadania.
Existe ainda um número demasiado elevado, e diga-se assustadoramente crescente, de cidadãos para quem o meio urbano construído, produtos e serviços prestados pela cidade, apresentam um elevado grau de inadequação às suas necessidades, sejam permanentes ou temporárias. Das crianças aos idosos, dos acidentados aos portadores de doenças debilitantes, para quem transporta bagagem ou um carrinho de bebé, para todos, enquanto condicionados na sua mobilidade, o meio construído apresenta dificuldades à interacção, sejam ao nível da acessibilidade física, da orientação ou do acesso à informação. Se estas condições causam frequentemente uma redução das capacidades físicas e sensoriais do indivíduo, os processos de envelhecimento que todos experimentamos vêm, nos contextos actuais, a limitar e condicionar o usufruto das funções e actividades urbanas.
A estatística não engana. Se os europeus contam hoje com a maior esperança de vida à nascença e se Portugal chegará a 2050 com quase 40% da população acima dos 60 anos e quase 30% com mais de 80 anos (dados das Nações Unidas), não podem mais os responsáveis pelos processos de reabilitação do edificado ou de requalificação urbana descurar estas realidades. Um edifício, um espaço, um equipamento público, um produto ou um serviço dito "inclusivo" ou "para todos", garante necessariamente um leque maior de utilizadores, maior frequência e comodidade das interacções e, numa lógica mais radicalmente económica, um alargamento do mercado alvo, das margens de lucro e da reputação ou imagem pública do produto, serviço, instituição ou da cidade no seu todo. Assim os custos ditos "acrescidos" da implementação de soluções "inclusivas" traduzem-se em retorno previsível, mais ainda porque a sua publicitação está assegurada por um conjunto de instituições que a este "cadastro" se dedicam e se constituem como observatórios e divulgadores de boas práticas. Ao invés, e por força da publicidade indesejada ou da concorrência de um mercado atento a estas questões, perdem todos os que não forem sensíveis a estas necessidades e obrigações que, para além de direitos constitucionais, são deveres já consagrados na lei portuguesa.
O quase desinteresse das sociedades e do poder político no que respeita a estas questões é já histórico. De há muito que quem se encontra em situação de limitação ou incapacidade, seja por razões congénitas ou adquiridas, se vê (e quantas vezes, se resigna como fatal) ostracizado ou marginalizado da vida da respectiva comunidade, sempre sob a condescendência e a caridade dos demais ou debaixo de uma preocupação politicamente correcta. Não se pode tratar apenas de melhorar leis, normas ou regulamentos. É preciso que se opere um verdadeira mudança cultural na forma como são entendidas e reivindicadas as questões da acessibilidade, colocando-as como tema central da equidade e democracia. Se a título de exemplo se analisar a implementação do que foi designado por Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade, não só se pode verificar que as medidas preconizadas não têm sido integralmente observadas, como é o Estado o seu primeiro incumpridor, seja por omissão, seja por demissão.
E se para muitos este é um paradigma novo ao nível dos conceitos fundamentais, impõe-se que estes encontrem a devida tradução prática, no dia-a-dia das autarquias e do Governo. Não é aceitável que na sociedade civil perdure um tão continuado e generalizado alheamento da defesa do espaço público, verdadeiramente inclusivo, enquanto coisa pública e, por isso, de facto de todos, sem excepção. Desenganemo-nos, lendo Lewis Mumford, "(...) Handicap é as pessoas pensarem que em democracia os governos são diferentes de quem os elegeu (...)"
Arquitecto e gerente do gabinete de arquitectura Ad quadratum arquitectos
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